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Quando eu estava entrando na adolescência já gostava de ler e lia
muito mais do que leio agora. Certamente me firmei como leitora de
verdade através da coleção Para Gostar de Ler, da Editora Ática,
que serviu muito bem os jovens adultos da minha geração – todos
eles com mais de 30 anos hoje – e de gerações anteriores.
Assim que a primeira onda de susto com o tema autismo passou e eu
comecei a raciocinar mais em cima da questão das diferenças em
geral, lembrei imediatamente do texto O Nariz, de Luis Fernando
Verissimo, que li há mais de 20 anos, no livro O Nariz e Outras
Crônicas, da coleção que mencionei. Relendo-o, vejo que ele
me diz bem mais de mim, do mundo em que vivo e do que idealizo
viver, do que disse àquela adolescente lá atrás.
Trata-se da história de um dentista de bom nome, clientela certa,
pai de família, vida social estável etc. Esse sujeito exemplar
resolveu, um dia, comprar um nariz postiço – desses que
encontramos fácil para compor uma fantasia de carnaval, com um par
de óculos acoplado. Mas, ele não queria a peça para nenhuma
ocasião festiva e passou a usá-la permanentemente para trabalhar, ir à
padaria, ao clube, ficar em casa, enfim.
Essa decisão – de vestir o nariz – foi capaz de desfazer sua vida
em todos os setores: perdeu clientes, amigos, foi enjeitado pela
família, ganhou fama de maluco, acabou sozinho e, a contragosto, no
consultório psiquiátrico. Tudo isso por conta de um acessório de
plástico, que modificou sua apresentação física, sim, pois era uma
diferença perceptível. Porém, não o impediu de continuar a ser o
pai amantíssimo, o esposo fiel, o profissional pontual, a companhia
amiga… Mesmo assim, nenhuma dessas características positivas
parecia maior (aos olhos dos outros) do que o estranho narigão no
meio do seu rosto.
A alegoria que Verissimo usou para compor esse pequeno e brilhante
texto, que refletia a realidade de décadas (séculos, milênios?)
atrás, poderia ter envelhecido, como eu envelheci, contudo,
permanece com o vigor da juventude, atual e vitimando gente todos os
dias. O mundo continua implacável com as pequenas e grandes
diferenças: um nariz de plástico, um peito de borracha, uma
profissão informal, um cabelo crespo, uma condição sexual, um
carro velho, uma roupa fora de moda, um braço a menos, uma tatuagem
a mais, um raciocínio lento, uma olimpíada de pessoas eficientes
com alguma deficiência – quantos et cetera cabem
aqui?
Não, as pessoas não estão preparadas para ler as entrelinhas das
diferenças, para perceber que cada um individual e coletivamente tem
muito a ganhar com o entendimento da diversidade. E que não se trata
somente de aceitar o outro como ele é – convivência e troca vão
além de aceitação. Ainda precisamos de leis para barrar o
preconceito e a intolerância. Ainda temos veículos de comunicação
fingindo que falam de todos para todos. Ainda temos escolas que não
incluem. Ainda temos pais ensinando filhos a chamarem os colegas de
aleijado, zarolho, retardado, mongoloide, cotó, débil mental. E,
sobretudo, ainda temos vergonha de sair por aí, de peito aberto e
cara lavada, usando nossos narizes de plástico e distribuindo aos
outros gratuitamente mensagens que não são de puro ódio, mas de
compreensão e amor.
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