Quando o autismo chegou nos encontrou exatamente como estamos hoje: juntos |
Há um ano atrás, quando eu olhava meu próprio rosto refletido no
espelho, o que via era a imagem de uma mulher perdida. Sim, eu
sorria, eu brincava, eu levava a vida como se meus dias não tivessem
se tornado insuportavelmente arrebatadores. E isso tudo era uma capa
que vestia para sair de casa e encarar a rua. Meu filho pequeno,
Bento, de quase três anos, meu orgulho de viver, estava enquadrado nos
Transtornos do Espectro do Autismo (TEA) e eu sabia absolutamente
nada sobre essa condição, não gostaria que estivesse acontecendo com ele e
preferia um outro diagnóstico, qualquer, que pudesse me atingir em
vez de atingi-lo. Mas, havia um detalhe: não era eu quem mandava, eu
não tinha o controle remoto da vida nas mãos.
Além de Bento, havia Tomé, meu segundo filho, com 4 meses apenas, um bebê precisando de carinho e atenção. Aliás, estava grávida de Tomé quando desconfiei que algo não ia bem com o
desenvolvimento de Bento – ele falava, contudo, tinha nítida
dificuldade de conversar, criar e manter diálogos e recusava se
relacionar com outras crianças; quando muito, dividia com elas o
mesmo ambiente. Porém, nunca desconfiei que a causa disso pudesse
estar relacionada ao autismo, por um motivo simples, eu não sabia o
que era autismo e tinha uma visão muito limitada a respeito do
comportamento de uma criança autista. Então, comecei a pesquisar
sobre o assunto e o que mais me ajudou, de verdade, foram os blogs de
mães de autistas. As semelhanças entre os filhos delas e o meu eram
tão gritantes que quando o primeiro profissional de saúde apontou
um possível diagnóstico me senti menos sufocada do que enquanto estive imersa no mar bravio da dúvida. Já não estava oficialmente
à deriva, havia um porto a vista e a possibilidade de ancorar,
entretanto, era uma terra desconhecida.
Ainda assim não estava sendo fácil. Ainda assim não me foi dito o
que eu precisava fazer objetivamente para ajudar meu filho a se
desvencilhar daquelas dificuldades todas, que foram se desmembrando
com o passar do tempo. Ele também balançava os bracinhos
freneticamente para indicar emoções que não conseguia expressar
com palavras; ele apresentava sensibilidade auditiva para certos
barulhos como choro e motores (liquidificador, furadeira, batedeira)
e tapava as orelhas; ele parecia nem sempre ouvir quando chamado pelo
nome; ele se desligava, às vezes, lançando um olhar perdido para
algum local fixo, como um ponto de luz; ele não mantinha contato
visual por muito tempo nem interesse em olhar para máquinas fotográficas; ele ria de coisas nada engraçadas; ele não
tinha o mínimo senso de perigo; ele não aceitava boné, chapéu,
touca de natação, óculos ou quase nenhum acessório do tipo; ele
lia precocemente e de maneira reta, sem soletrar nem gaguejar; ele
parecia ver os objetos antes de notar as pessoas; ele passou a criar
nojos específicos de certos alimentos, aparentemente, por conta da
textura; ele tinha dificuldade de esperar, de manter um nível
esperado de concentração e atenção; ele parecia não entender
algumas regras simples de traquejo social ou até de brincadeiras
infantis para a idade; ele repetia muito as mesmas frases; ele
apresentava limitações motoras quase imperceptíveis, tipo não
conseguir saltar tirando os dois pés do chão; ele pulava muito
(sobre a cama ou sofá) quando uma programação que gostava estava
passando na TV. Esses são alguns dos itens que pude recordar agora e
que, até me apresentarem como características não-exclusivas de
TEA eu jamais saberia relacionar. Quando digo não-exclusivas, estou
querendo atentar para o fato de que crianças com outros diagnósticos
ou sem diagnóstico algum (as chamadas típicas/neurotípicas) também
podem apresentar o mesmo comportamento; talvez não todos esses
juntos e certamente sem as limitações que o autismo impõe através
de cada um deles. Ninguém jamais me disse isso, eu jamais havia
estudado sobre ou sido orientada por um pediatra, por exemplo.
A recomendação inicial do especialista, uma psiquiatra infantil, foi estimulação através
de terapias. Rapidamente Bento estava com acompanhamento de
fonoaudióloga, terapeuta ocupacional e psicóloga. Também entrou
para a natação, que, embora sem esse fim específico, considero
absolutamente terapêutica. Ele já frequentava a escola, que é a
maior bomba de estímulos que conheço. Uma boa escola é meio
caminho andado, com certeza, essa escolha deve ser prioridade. Desde
que ele foi enquadrado no espectro do autismo pudemos (escola e
família) conduzir melhor sua aprendizagem e por via alternativa,
quando necessário.
Da lista de dificuldades que citei ao longo do texto, Bento superou
algumas, outras vão e vem, como um ioiô, crescem ou decrescem em
aparição. As mais determinantes, porém, continuam a ser as mais
frequentes: dificuldade de interação social com pares e dificuldade
de comunicação. As duas se relacionam entre si. Quando
uma criança olha para a outra e não consegue naturalmente ser
atraída pelas características pessoais dessa segunda – que vão além do
desenho da roupa, da cor do cabelo ou do personagem do calçado – é
mais difícil estabelecer uma comunicação efetiva que inclua querer
saber o que o outro sente, o que sua expressão facial indica, que
tipo de brincadeira poderia compartilhar, que palavras usar. É
desafiador para mim, que acredito na comunicação entre as pessoas
como mola do mundo, lidar diariamente com essas limitações através
de alguém que, felizmente, não está alheio ao a redor e, com o
passar do tempo, parece se perceber cada vez mais dentro desses limitadores, mesmo
que não saiba explicar o que está acontecendo ou entender de que
forma pode contornar isso. Daí vem um imenso sentimento de
ansiedade, da parte dele e da minha. Por que, antes de tudo, esse
alguém é meu filho. E eu não abro mão de que viva uma infância
saudável, como deve ser a infância de qualquer criança.
Há um ano eu sabia menos, bem menos do que sei hoje. E como o que
já sei é ainda mínimo, acredito que no ano que vem saberei um
pouco mais. Mas, ninguém precisa saber tudo de autismo e, acredite,
ninguém sabe. Mesmo os especialistas que lidam com ele diariamente. Por
isso desconfio de tudo o que me parece mirabolante, como a promessa
de cura sem causa – e do uso leviano da palavra cura. Desse
conhecimento que adquiri até agora, nada me ensina tanto e me motiva
mais do que observar o meu filho de perto, em detalhes. Todas as
vezes que olho para ele me sinto apertando a tecla zoom. Preciso
vê-lo além do que é aparente. Preciso compreender o que ele recebe
com incompreensão para que possamos remar contra a maré da
incerteza em que vivemos. Preciso não enlouquecer e também ter a
consciência de que não é benéfico ser completamente sã. Preciso
relaxar das certezas do mundo.
Se alguém dissesse para aquela mãe de um ano atrás que fui:
“aquieta seu coração, sem medo, segue firme o passo da vida” –
eu não saberia distinguir se esse conselho era um sonho bom ou a
antessala do pesadelo. Eu estava em pânico com um sorriso nos
lábios, eu desmoronava por dentro e o que se via de fora era uma
imensa fortaleza. Eu tinha vergonha de me desnudar como estou fazendo
agora, de assumir que sou tão fraca quanto forte, que choro e
sorrio, que ainda me perco no caminho e preciso me nortear através
de algo que é invisível e instintivo, mora dentro de mim, e pode
ser que nunca provem cientificamente a existência, mas acredito
que seja… amor.
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