Benditos folhetos (Google Imagens) |
Você já deve ter lido em algum lugar que uma das características
frequentes em pessoas com autismo é a fixação inapropriada por
objetos. Essa palavra “objeto” às vezes limita nossa
compreensão, então, vou colocar aqui que o interesse extremo
pode se dar por dinossauros, carros ou partes de carros, sapatos,
roupas, cores, letras, números ou quase tudo o que for inanimado. E
no caso de Bento: folhetos de loja.
É triste admitir que nós acabamos por reforçar esse tipo de
comportamento fixo, restrito e repetitivo, que pode partir do simples
interesse para a obsessão em pouco tempo. Triste, mas temos que
admitir para dar um passo adiante. Quando Bento começou a se mostrar interessado pelos
folhetos, eu e a maioria dos adultos achava muito bonitinho e
engraçado. Ele folheava aquilo com o maior prazer, inicialmente lendo os preços dos produtos, depois passou para os nomes e marcas.
Muitas vezes, quando íamos ao shopping e ele resistia à hora de vir
embora, eu tinha uma carta na manga: “a mamãe pegou um folheto da
loja tal, vamos embora e você vai vendo no carro”. Eureka! Dava
certo: zero escândalo, zero birra, íamos felizes no caminho.
Comecei a notar que aquele apego estava ultrapassando o desejável
para ele e para mim quando a presença do folheto começou a criar um
ambiente limitador para Bento. Ele não estava mais saindo de casa
para aproveitar a ida ao shopping, por exemplo, mas para uma espécie
de jogo mental que criou em busca desse objeto de desejo. E não
bastava um, agora ele queria todos os folhetos, de todas as lojas.
Lembro de uma vez que estávamos viajando, ele entrou numa dessas
grandes lojas de brinquedos e ao encontrar a bandeja dos folhetos
vazia disse em voz alta:
- Eu quero o encarte!
A vendedora da loja parece não ter entendido direito e respondeu:
- Você quer brinquedo de encaixe? Venha aqui que eu vou mostrar
alguns bem legais.
Mas, ele não estava falando com ela nem queria brinquedo coisa nenhuma. Aliás, ele só se
desinteressava mais e mais pelos brinquedos. Em outra ocasião,
estávamos indo comprar chocolates (que ele adora!) e quando ele
avistou o folheto numa loja vizinha não quis seguir em frente. Eu o
adverti de que não era hora de ver a revista da loja e que se
ele pegasse não ganharia os chocolates. O que ele preferiu? Sem
remorso, o encarte. Chocolate perdeu espaço. Outra vez, ele estava
todo feliz porque ia para a piscina de bolinhas e desistiu no ato assim que avistou o encarte da loja em frente.
Mais recentemente Bento passou a recolher os folhetos do lixo, ameaça arrancar das mãos de pessoas conhecidas e desconhecidas; recusa-se a recortar
figuras dos encartes para atividades da escola e até briga com o
irmão para que não toque o objeto (que elevou ao nível do sagrado). Acompanhar essa progressão é
muito desgastante e doído para mim e para o pai, especialmente,
porque hoje, esses folhetos representam, além da fixação,
isolamento, desinteresse pelo entorno. O que, óbvio, é uma pancada
certeira nas relações sociais dele.
Diferente do início do processo, ele já não fica calmo na
companhia do folheto, e sim, eufórico, lendo o nome dos produtos, as
marcas e slogans frenética e repetidamente. Nos livrar disso não
tem sido fácil, em especial agora, que outras pessoas perceberam
essa “preferência” dele e até juntam encartes para
“presenteá-lo” – até mesmo os coleguinhas da escola. Não as
recrimino, pois elas não conhecem essa situação a fundo, porém,
estamos lutando contra isso com o esclarecimento.
Os folhetos não estão apenas nas lojas, estão no trânsito, vem
dentro dos jornais e revistas por assinatura, sujam as ruas em locais
de movimento intenso de pessoas e enfiam debaixo de nossas portas.
Não é simples retirar uma fixação da rotina de nossas crianças
pequenas com autismo e também não é benéfico alimentá-las. Elas
precisam ver o mundo diverso, como ele é, e não apenas uma pequena
porção dele. De qualquer forma, a fixação aponta um
interesse que em alguns casos pode ser aproveitado na aprendizagem.
Com os folhetos podemos ensinar os conceitos de dentro e fora, em
cima e em baixo, direita e esquerda, pequeno e grande etc. Mas, até
para isso, vai ser preciso que a criança abra espaço para
compartilhar esse momento. O que, numa fixação, nem sempre
acontece.
Excelente observação. Aquilo que se inicia como um reforçador ao comportamento adequado, no caso de uma criança com TEA pode evoluir para esse caminho que você descreveu. No caso, específico, dos folhetos - como mencionado no seu texto - temos uma ferramenta psicopedagógica. A fixação irá ser trabalhada e ao longo do desenvolvimento dele isso vai passar.
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