quarta-feira, 6 de julho de 2016

Olhe nos meus olhos!*

O verdadeiro olhar nos olhos: sem cobrança ou obrigação (arquivo jul. 2016)

- Bento, olhe nos olhos da mamãe!

Já perdi as contas de quantas vezes proferi essa frase, fazendo com que meu filho saia da aparente paz que o carrega para longe de mim quando lança seu olhar vago rumo a algo que eu não consigo enxergar. Uma paz que não entendo. Não sei se não entender o porquê dele estar parado, fitando o "nada absoluto", como se o mundo ao redor não existisse, é o que me faz querer tirá-lo dali, daquele sentimento que ele vive sozinho e eu, sua mãe, não consigo acessar. Provavelmente seja.

O autismo é isso: não lhe dá respostas. Pelo contrário: lança perguntas e mais perguntas num ritmo tão frenético que ninguém tem como acompanhar e responder, a não ser com hipóteses.

-Bento, olha no olho da mamãe.

Digo novamente. Ele olha. Às vezes, sorri. Não sei do que está sorrindo e ele também não saberá explicar se eu perguntar. Bento faz 4 anos em outubro, é uma criança excepcional, carinhosa e inteligente, mas vive amarrado a uma coisa que não é apenas ele mesmo. Essa coisa se chama autismo. Não é doença, é um transtorno que impede que seu desenvolvimento acompanhe o ritmo natural da idade, em algumas áreas. Bento tem uma memória incrível e a capacidade de leitura precoce que impressiona qualquer adulto (da escola à padaria, da família a meros desconhecidos). Mas tem também uma trava nas relações sociais que atravanca sua intenção comunicativa, interfere na fala, atrai o foco de sua atenção para questões irrelevantes e lhe provoca muita ansiedade. Eu estou sempre em busca de lidar melhor com todas essas condições, lutando para que a maioria delas seja transitória, mas nem sempre é possível ver tudo, de tão perto, com naturalidade.

Faço coisas erradas, como qualquer pessoa viva, e nenhuma delas para prejuízo do meu filho. Já busquei confortá-lo com frases simples, porém a ideia por trás delas pode parecer complexa:

-Bento, a mamãe tem algo muito importante para lhe falar. Se você não quiser, não precisa olhar nos meus olhos, quero apenas que você escute.

E pude sentir meu filho mais atento e menos nervoso. Embora ele olhasse o tempo inteiro para o chão, enquanto cavava um buraco imaginário com os pés, senti que estava conectado e calmo. Entre nós dois não existiu a tensão do olhar no olho. Essa lembrança me marca fortemente.

É claro que não deve ser uma conduta com aprovação das maiores linhas terapêuticas para TEA/autismo, mas se alguma terapeuta vier me dizer que posso estar atrapalhando a evolução do meu filho com essa atitude, vai ter que me ouvir rebater que agir contra isso está atrapalhando meu senso de maternidade.

Padrão de confiança

O gerente do seu banco olha nos seus olhos quando está prestes a fechar um negócio em que você não é o maior beneficiado; o namorado infiel olha nos seus olhos quando jura que você é a única; a colega de trabalho olha nos seus olhos e lhe dá parabéns depois de ter dificultado sua promoção.

Olhar nos olhos não é sinônimo de confiança, honestidade ou sensibilidade, é uma convenção social, e mesmo sabendo disso fica difícil compreender quem não é convencional. Convenções não consideram o indivíduo, e sim o coletivo. Não há problema algum em ser convencional, olhar no fundo dos olhos do outro, seguir um padrão de comportamento esperado; danoso é não aceitar variações, possibilidades. Perceber o outro em sua particularidade está cada vez mais raro. Sentir o outro é trabalhoso, mais fácil olhar apenas, vendo a superfície. 

Eu treinairia incansavelmente a habilidade de fitar o globo ocular da outra pessoa enquanto fala se disso dependesse a felicidade do meu filho. Mas não depende. Ainda assim, mais ou menos dia sei que ele pode sentir a necessidade de seguir esse padrão, em nome de enquadrar-se, ser igual. E eu também poderei ter a artificial sensação de alívio, mesmo entendendo que para olhar para aqueles rostos (e para aquelas lentes de máquina fotográfica) por alguns instantes ele precisou deixar de ser um pouquinho quem ele é, abandonado sua paz introspectiva para guerrear conosco no nosso mundo de olhar torto e mensagem subliminar.

* "Olhe nos meus olhos" é o título do livro autobiográfico de John Elder Robson, diagnosticado com Síndrome de Asperger (que é um transtorno do espectro do autismo) depois de adulto. Embora tenha iniciado há pouco essa leitura, já percebi o quanto ela é inspiradora. 

2 comentários:

  1. Olá Isolda. Tenho um filho com uma situação bem parecida com o seu. Enquadrado no TEA, mas mto inteligente, excelente memoria, doce, carinhoso, leitura precoce. Ele consegue verbalizar muito bem o que quer e o que nao quer, mas nao consegue dialogar, contar uma historia, um evento escolar. Tem mta dificuldade social.
    Fiquei muitissimo interessada em ler este livro que você menciona no post (Olhe nos meus olhos), mas não encontro em nenhuma livraria, fisica ou online. Pode me dizer como/onde vc conseguiu?
    Força e fé na sua luta diária! Abs

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Graci, obrigada pela companhia aqui. O livro é realmente maeavilhoso, mas foi uma pendenga conseguir. Entrei em contato com as maiores livrarias e nenhuma tinha. Procurei a editora e me disseram que não estavam mais imprimindo a versão dele em português. No fim das contas descobri uma terapeuta aqui em Maceió que o tinha e ela me emprestou sem nem me conhecer. Na internet achei em um sebo virtual por R$ 250, uma exploração sem tamanho, jamais compraria.

      Excluir