terça-feira, 30 de agosto de 2016

O futuro de uma criança com TEA/autismo

O presente está nas nossas mãos (Google Imagens)

Desde que as expressões TEA* e autismo entraram definitivamente para nossa família, há quase um ano, um dos comentários mais inquietantes que ouvi foi, sem sombra de dúvida, essa pergunta:

- Será que ele vai fazer faculdade?

Ainda sinto resistência em escrever a frase e ter que voltar a esse episódio dolorido. Saber que a questão foi proposta por alguém importante no meu círculo afetivo é o mais difícil. Se um desconhecido ou alguém que admiro pouco tivesse jogado uma pedra no meu rosto com mais força ainda, quem sabe, doeria menos. Contudo, quem jogou foi alguém que amo.

Minha resposta saiu diplomática:

- Como é que eu vou saber se Bento vai para a faculdade? Por acaso seus pais sabiam se você entraria para um curso universitário? Os pais de qualquer criança, no auge da infância, sabem?

As interrogações que deixei no ar devem ter surtido o efeito esperado. A pessoa percebeu que poderia ter sido menos insensível. Não tocou outra vez no assunto "faculdade" e hoje se mostra interessada apenas na evolução de Bento dia a dia. Eu sei que não foi intencional me magoar, mas acontece que quando atropelamos alguém - com ou sem a intenção de atropelar - esse alguém vai sair machucado de qualquer jeito. Por isso é conveniente pensar mil vezes antes de decidir ser imprudente ao volante ou com as palavras.

Sobre o futuro de Bento ou de qualquer criança dentro ou fora do espectro do autismo o que tenho a dizer é o que já se sabe: não há como prever. Isso não quer dizer que não se deva criar expectativa, apesar de nós, seres humanos, quase nunca sabermos lidar com as expectativas que criamos. Geralmente, elas nos engolem, como a criatura devorando o criador. Se essas expectativas atravessam fases imprevisíveis como a infância e a adolescência para se concretizar lá na vida adulta, então, acertar na mosca é praticamente um exercício de futurologia - coisa que não acredito.

É impossível para mim pensar qual curso superior meu filho entraria daqui a xis anos, enquanto, na mesa ao lado, ele tem dificuldade de manusear sozinho sua tesoura sem ponta e eu ainda preciso lembrar a ordem dos dedos nos buraquinhos - primeiro o "cata piolho", depois o "fura bolo". Ele ri e tenta de novo e não há faculdade no mundo que ganhe relevância perto desses poucos segundos de carinho e aprendizagem. Então, baseada no esforço e no ritmo dele, crio a expectativa de que mês que vem ele estará mais hábil do que hoje na tesourinha - e estou pronta para destruir o prazo (sem remorso) se Bento precisar de mais tempo e de mais dedicação da minha parte ou mais torcida. 

O perigo de prever o futuro a qualquer preço é que essa atividade nos toma um pedaço precioso do presente, mexe com nosso humor, nossa auto-estima, nossas relações pessoais e até com nossa fé na vida. Quando o futuro chegar, certamente, vai recebê-lo melhor quem tem ideias flexíveis e não planos rígidos. Algumas pessoas com autismo jamais vão falar (até onde sabe a ciência hoje), mas grande parte delas pode se comunicar usando métodos alternativos. Preparar para o futuro deve ser apresentá-las esses métodos até encontrar um que melhor se adeque as suas necessidade e compreensão.

Existem pais de pessoas com deficiência do tipo incapacitante que preveem deixar uma gorda quantia de dinheiro para ser gerida por empresas quando não estiverem mais aqui para cuidar de seus filhos. Não podemos julgar, eles estão agindo de acordo com as próprias convicções de fazer o bem. Mas, será que se ao longo da vida eles tivessem, além de se preocupado com a grande quantidade de dinheiro a levantar, pensado também em fortalecer as relações de afetividade com membros da própria família ou pessoas próximas, o tratamento desse filho não poderia ser melhor gerido e com um pouco de sentimento, além de zelo profissional? A base do acordo seria confiança. 

Quando falo em não julgar - apenas refletir sobre o tema - é por considerar que o mais importante é alimentar o amor pelo filho. Se eu acho que pais de crianças com mais comprometimento que Bento pensam o futuro de outra maneira? Claro que sim, e o futuro (que é uma projeção) deve mesmo ser pensado caso a caso de acordo com o que cada família tem como referência e prioridade; deve ser visto de várias formas.

Em se tratando de TEA/autismo, trabalho para ajudar meu filho, prioritariamente, em termos de autonomia e relações sociais, sem forçar a barra, sem tentar extrair dele qualquer coisa que ele genuinamente não possua. Acredito que, removendo algumas pedras do caminho e contornando as que não podem ser removidas, nem o futuro será capaz de nos retirar essa verdade: Bento vai ser quem ele já é.

*TEA; Transtornos do Espectro do Autismo.

4 comentários:

  1. Sou autista, chamo-me Miguel ou Miguelito e entre minhas maiores dificuldades está o relacionamento social, as pistas sociais que tantos psicólogos tentam nos ensinar, ou melhor, nos obrigam a decorar para termos uma vida melhor perante os neurotípicos, quero dizer que eu sendo negro devo tornar minha pele branca para ser melhor aceito ou as pessoas devem aprender a verdadeiramente lidar com a diversidade, talvez a pergunta sobre a faculdade venha da falta de conhecimento daquele que perguntou e nada sabe sobre o espectro do autismo, acredito que ele ou ela queria saber se Bento terá futuramente a capacidade igualada de tal forma como os neurotípicos, ao ponto de poder cursar uma faculdade, seu eu fosse fazer um prognóstico eu diria que sim e não, meu não é porque a faculdade não aceita neurodivergentes como eu, a faculdade deixa você entrar mas não se adapta a você, se você é neurodivergente terá que lutar duas ou três vezes mais, meu sim é que nada impede de lutar, degladiar, humilhar-se, sofrer e conseguir quebrar as enormes e dantescas muralhas da cultura social e favorecimento social, da socialização, da conquista social dos colegas de faculdade e até mesmo do professor que se torna indisposto a lhe ajudar uma vez que entende que você é extravagante, fechado, arrogante, petulante e esquisito, assim nós autistas somos rotulados dentro de uma faculdade, ou então, você abre para o professor que é autista e corre-se então a roleta russa de o professor ter bom senso e apenas tentar se adaptar a você ou um tiro na cabeça, ele abre para todos e você fica vulnerável, uma vez que não consegue detectar as pistas sociais.

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    1. Miguel, só posso agradecer seu comentário tão cheio de realidade. Na verdade, todos esses desafios que você enumera na faculdade já são sentidos por nossos pequenos nos níveis anteriores do ensino. A grande diferença é que o ensino superior é um caminho que você trilha praticamente sozinho, tudo envolve suas escolhas e os relacionamentos que tece. Sem uma base familiar forte e uma escola que inclua realmente, muitos dos nossos jovens que poderiam estar na faculdade por opção, não por anseio dos pais ou da sociedade, ficam no meio do caminho. Obrigada por sua presença aqui e venha sempre

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  2. Boa noite, você sabe me dizer por qual motivo indivíduos autistas tem dificuldade em mentir?

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    1. Oi, Felipe. Há hipóteses. Uma delas diz que quando mentimos, o fazemos porque esperamos alguma reação das outras pessoas. Mentir, é um comportamento social de partilha. Minto porque quero parecer pior ou melhor para o outro, minto porque desejo passar alguma impressão à opinião alheia. Como a área da comunicação e da interação está afetada em menor ou maior grau em pessoas com autismo, elas simplesmente podem não valorizar a recepção do outro, a maneira como o outro vai receber sua mensagem, por isso alguns são "super sinceros" e simplesmente não mentem. Espero que tenha entendido. Beijos e obrigada pela presença e registo aqui.

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