segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Sobre mudar, com o autismo na bagagem

Nada existe de permanente a não ser a mudança (Heráclito)
Mudamos. Não a cor do cabelo, o modelo do carro, o canal da tevê. Mudamos de casa, de cidade, de região. Temos pela frente um novo emprego, uma nova escola, um novo sotaque, um novo clima e novidades que não podemos prever. Mudamos de Maceió, Alagoas, para Londrina, no Paraná. Estamos juntos por amor, trazemos coragem na bagagem de mão. Medo também, mas o medo que instiga, não o medo que paralisa. Precisamos de movimento para mudar, continuar mudando.

Viajam conosco uma gata vira-lata chamada Cuíca e dois pequenos, Bento e Tomé. Bento dá nome e razões para que esse blog exista como uma reflexão da maternidade e da própria existência que faço todas as vezes em que estou sentada na frente do computador, escrevendo ou tentando escrever, dando o meu máximo – não máximo de experiência e entendimento, máximo de sentimento e disposição ante o cansaço. Bento tem 4 anos e como diz o último laudo “características compatíveis com o espectro do autismo”. O que isso significa? Muita coisa. Entre elas que mudar pode ser uma experiência mais traumática para ele do que seria para outra criança da idade.

Alguém já deve ter lhes dito que autistas reagem mal a mudanças de rotina, de terapeuta, da posição dos móveis da casa etc. Isso pode ser verdade, e em diversos casos é, porém, ninguém esqueça que quem vai dizer como a criança reagirá a todas essas modificações é mais seu temperamento do que “seu” autismo. Ou vocês não conhecem pessoas que se sentem incomodadas com situações novas e fugas de rotina? Será que todas elas têm autismo? Aposto que não. Acontece que uma criança autista que reage mal a uma mudança pode expressar a confusão que a perda de referência lhe causa sem palavras exatas, com crises nervosas, agressividade. É provável que ela não consiga, como eu consigo, cruzar as pernas num aeroporto frio e chato depois de horas de espera e fadiga e fingir que está tudo bem. E se eu consigo, repito, posso tentar roteirizar esses acontecimentos previsíveis com alguma antecedência para ela e como a estratégia pode não funcionar brilhantemente, posso tentar lhe acalmar depois da explosão. Advirto: só é fácil na teoria.

Nesse ponto somos privilegiados. Bento gosta de mudanças. Ele gosta de viagens, avião (que eu detesto), pode passar horas e horas correndo em saguão de aeroporto (de onde vem tanta disposição?), gosta de hotéis, shoppings, restaurantes, gosta de se enfiar em transporte coletivo, taxi e, agora uma novidade, Uber. “Eu quero ir de Uber” é a frase da temporada. Mas, ele é uma criança, tem apenas 4 anos e vai se irritar, vai reagir com negativas, vai provocar. Desde que a empresa transportadora recolheu nossos móveis, tralhas e eletrodomésticos, no final de janeiro, já passamos por 3 endereços. Sim, 3 apartamentos, 3 quartos, 3 camas diferentes. Esse endereço que estamos agora ainda não é definitivo, em breve faremos uma nova mudança. O vai e vem me incomoda brutalmente, contudo, descruzo as pernas, cruzo para o outro lado, e sorrio. Não devo esperar o mesmo comportamento de Bento ou de Tomé. Seria louca se esperasse.

A primeira entrave ao chegar em Londrina foi: meninos sem escola e com o ano letivo em curso. Algumas pessoas indicaram enes nomes, a internet nos levou a outros, porém, o que adiantou de verdade foi conversar com os nativos. Foram as pessoas do local que souberam nos dar as indicações mais precisas, as que combinavam mais conosco e a partir daí pudemos decidir com segurança algo que nos estava angustiando de certa maneira. Não foi nem poderia ter sido uma escolha apressada, escolhemos com o coração e estamos depositando nessas escolhas (os dois ficaram em escolas diferentes) as melhores expectativas; conscientes de que nenhuma delas será o que imaginamos sem a retaguarda da família – já nos posicionamos a postos.

O tema “autismo” foi tratado em todas as escolas que visitamos e recebido com naturalidade. Na maioria delas a diversidade estava presente e exposta através de crianças adoráveis com ou sem deficiências e do discurso inclusivo mais ou menos afinado dos coordenadores. Também ouvimos propostas de instituições que dizem formar crianças para serem empreendedoras, líderes e outras funções que realmente nos assustaram enquanto pais de meninos tão pequenos. Somos simples e, apesar disso, a simplicidade ainda é nossa busca. Se nossos filhos serão empreendedores um dia ou líderes não é algo que “decidiremos” ou direcionaremos agora. Optamos por escolas em que o foco da aprendizagem não está no conteúdo, mas no aluno e na interação dele com o meio. Entendemos que essa linha atende melhor às necessidades deles hoje.

O que tem nos atrapalhado bastante é a falta de rotina. Bento está provisoriamente sem as terapias e sem esporte e com a vida de cabeça para baixo tenho me dedicado pouco, para não dizer nada, a tipos de estimulação caseira. Todos os brinquedos e materiais que uso para isso estão em algum lugar do mundo dentro de um caminhão de mudança que ainda não chegou e as pedidas do dia não me deixaram montar um esquema para nós no improviso. Isso me entristece, mas não pode ser motivo de desespero, logo as coisas se ajeitam.

Vê-lo muito tempo na frente da televisão realmente me açoita e tenho consciência de que fiz pouco a respeito. Felizmente, as aulas estão de volta. Talvez eu me sinta menos culpada por ele estar numa fase de bastante evolução nas relações sociais e com intenção comunicativa a mil. Na rua vive se comunicando com as pessoas e é cada vez mais comum alguém comentar: como ele é sociável! O que esquenta meu coração e o do pai dele, só nós dois sabemos o tamanho da alegria de ver nosso filho buscar se comunicar com o outro com interesse e conseguir estabelecer conexões. Bento está no meio de uma explosão de entendimento e expressão que nos surpreende. Nós estamos mudando. Ele também. Quando a poeira baixar espero voltar com mais presença à essa casa virtual que é meu aconchego e me acompanha aonde vou. 

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